sexta-feira, março 04, 2005

O Eterno Retorno do Financiamento Cultural

Sempre que mudamos governos em Portugal regressa a discussão dicotómica sobre qual o papel do Estado no financiamento da Cultura. Dividem-se Socialistas e Sociais-democratas, os primeiros defendem um papel mais interventivo, de fomento e de sustento de algumas áreas que não subsistiriam ao gosto dominante. Por sua vez, os segundos colocam o Estado numa postura de definição de políticas de carácter estrutural (situação ideal, mas rara) e forçando os produtores e realizadores culturais a procurarem fontes de fnanciamento alternativas.
Como em quase tudo na política portuguesa na junção destas duas perspectivas está a virtude. Nem o Estado se pode alhear de fomentar a criação cultural, nem pode ser o seu único e exclusivo sustento. As visões económicas diferem várias vezes das estrictamente criativas. Aqui começa o gap entre os dois mundos e as pontes que os unem existem, mas ainda são raras.
Historicamente sabemos que os períodos de maior riqueza económica geraram os grandes momentos históricos de produção artística, não necessariamente as melhores obras, pois é possível criar uma obra-prima em ciclo de crise. No entanto a Arte, mais do que paz, precisa de financiamento, de encomendadores, de mecenas, de públicos.
Como conciliar a Cultura com os gostos heterógeneos dos públicos? Esta é a tarefa do produtor ou programador cultural, não do criador. Como a palavra indica, o criador cria...
Outra pergunta: Quem arranja o financiamento para o produtor cultural poder revelar o criador? O gestor cultural. Aqui começa uma das lacunas da Cultura em Portugal. Instalou-se uma resistência, dentro dos sectores culturais, que procura travar a marcha irreversível dos conceitos empresariais em museus, monumentos e equipamentos culturais. A tal facto não é alheia a formação de grande parte do seu staff, licenciados em Ciências Sociais, com Pós-graduações ou mestrados nas áreas técnicas. A formação pós-licenciatura encara esta realidade sobre a forma de alertas à navegação, mas raramente passa disso. Os seus formandos têm a sensibilização, mas também a incapacidade de acção.
A falta de investimento do Estado pode ter resultados positivos, uma vez que força a quebra da letargia que a gestão cultural atravessa em Portugal. Os exemplos de sucesso demonstram que a iniciativa privada na criação de equipamentos e na gestão pode ter resultados interessantes, mesmo com um mercado reduzido e pouco abastado como o nosso. O reverso da medalha desta política ou da falta dela é a confrangedora falta de visão de longo prazo e uma incapacidade de perceber a Cultura como mais-valia económica. Este valor não é tangível, é dificilmente quantificável, mas é fundamental. Portugal precisa de conteúdos culturais que suportem a sua política de desenvolvimento industrial e turística. Áreas vitais como a agricultura (o vinho), a indústria (faiança, cristalaria, etc) requerem fortes conteúdos culturais que ofereçam o valor acrescentado que as produções globalizadas não possuem.
A falta de conteúdos tem a sua face mais visível na oferta turística nacional obrigando Portugal a repensar toda a sua estratégia para o sector. O que pensarão actualmente os iluminados que quiseram fazer de São Martinho e Nazaré uma extensão do Algarve?
O ICEP lançou uma das mais interessantes campanhas promocionais de Portugal no estrangeiro, que tem como conceito: “Portugal, Think Deep”. A profundidade e a intensidade do ser português em oposição à espontaneidade, algo superficial, do espanhol e do italiano. O turismo já não vive só de locais, mas principalmente de experiências, de vivências, quanto mais profundas mais marcantes. Assim começa o efeito dominó.
Pode esta estratégia funcionar com a realidade medíocre do investimento estatal na Cultura e com um certo corporativismo elitista dos próprios protagonistas? Certamente que vai funcionar a imagem transmitida pela televisão e imprensa, mas será reprovada a experiência daqueles que nos virão visitar.
Regressando às políticas dos diferentes partidos, todo este paradoxo exposto anteriormente afunila numa questão essencial: a reforma da Administração Pública. Neste caso a tendência tem sido centrar a discussão apenas na gestão dos recursos humanos e, se é verdade que há muito a fazer neste domínio com a necessidade de rejuvenescer os quadros, também é verdade que esta incidência torna a discussão redutora. Parece-me igualmente importante que se revejam os modelos de gestão implantados, aproximando-os da dinâmica empresarial, premiando quem cumpre. Que me interessa a mim como director de um monumento ou museu apostar na venda de merchandising se irei receber o mesmo no orçamento anual, venda muito ou pouco? Mais... que Estado é este que, em vez de premiar quem menos gasta, obriga os seus serviços a gastar os excedentes no mês de Dezembro senão serão retirados no orçamento do próximo ano?
Enquanto este modelo de gestão não for alterado toda a reflexão presente neste artigo assume um carácter quixotesco e corremos o risco das actuais resistências se tornarem num verdadeiro sistema imunitário que impossibilite a implantação de reformas sérias.
A título de resumo deixo alguns dos conceitos chave que procurei transmitir, neste artigo, e que serão decisivos na implantação de uma política cultural de futuro, com apoio do Estado, mas não Estatizada e, principalmente, não estática como acontece presentemente. A Cultura deve ser encarada como uma mais-valia, um factor de atractividade, para a nossa Economia fornecendo conteúdos para a Indústria, Serviços e Turismo. A excessiva depedência do Estado deve ser encarada como um problema real sendo absolutamente fundamental a mudança dos modelos de gestão dos serviços públicos e o rejuvenescimento dos cargos de direcção que requerem conhecimentos cada vez mais profundos de gestão económica e financeira.
A entrada de privados na gestão de equipamentos culturais deve ser alargada muito para além da mera questão mecenática, também ela a precisar de revisão. O PS propõe tornar o mecenato mais interessante para projectos de média dimensão, em vez do actual quadro que apenas favorece projectos de grande envergadura (como teatros ou orquestras nacionais). Trata-se de um bom princípio a carecer de execução. Num país sem espírito filantrópico, a Cultura tem de ser atractiva para empresas e empresários, agindo como uma fonte de publicidade positiva e prestigiante para o investidor. Uma vez que se desvaloriza tanto a riqueza intelectual que a Cultura nos fornece, pelo menos consigamos encarar que também é uma fonte de riqueza económica. Não se trata de Cultura do dinheiro, mas de Cultura com dinheiro.

Artigo publicado em:
http://www.tintafresca.net



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