A vitória de Bush assentou no destaque concedido aos valores da América profunda recuperados pelas correntes conservadoras que se desenvolvem sempre que a América se sente atacada na sua diferença. O militarismo e a religião são as duas principais forças para suster a ameaça invisível. George W. Bush implantou medidas de excepção que assustariam qualquer democracia europeia, tais como a recusa ao Tribunal Internacional de Haia, o incumprimento declarado da Convenção de Genebra (por exemplo na questão de Guantanamo), ou quando criou um código legislativo para enquadrar medidas excepcionais de investigação e combate ao terrorismo, que concederam mais poderes aos investigadores do que aos cidadãos, o célebre Patriot Act.
Nasce assim aquilo que apelido, um pouco abusivamente, de Bush(ido). O Bushido autêntico foi um código de honra de cariz militar que orientava os samurais japoneses na sua relação com a vida em geral e, com a sociedade em particular. Uma rígida hierarquia aliada a uma obediência absoluta tornava esses homens resistentes e temidos, preparados para todas as eventualidades. O espírito republicano para a América requer obediência e confiança na autoridade e prontidão para o sacrifício colectivo. Pode parecer estranho, mas a candidatura que culminou na vitória do samurai americano Bush contou com apoios surpreendentes como o de Junichiro Koizumi, primeiro-ministro do Japão. O alinhamento dos dois países, a nível externo, era conhecido, mas o apoio declarado do chefe-de-estado japonês foi invulgar na política do sol nascente.
No continente europeu esse apoio deve ter parecido desajustado às nossas democracias estrategas que, depois de passarem um mandato a criticar GWB, se este não vencesse estavam na iminência de participar numa realidade política mundial para a qual não estavam claramente preparadas.
A Europa dos cidadãos encara a vitória incontestável dos Republicanos, na presidência e no Congresso, num misto de estupefacção e resignação. A Europa dos políticos não deixa de encarar a manutenção do status quo como algo que lhes continuará a ser útil nos momentos mais delicados do futuro. Será sempre fácil dizer mal de Bush.
Mas e se Kerry tivesse ganho?
Nesse hipotético cenário, na próxima semana, Kerry voaria para Madrid para ser recebido na Moncloa. Que apoio concederia Zapatero? A posição de ambos os Estados estariam muito próximas, mas enviaria militares espanhóis para operações de paz no Iraque, depois da retirada de Junho?
O novo líder continuaria a viagem partindo de Madrid, com escala em Paris. Na cidade das luzes Kerry encontraria uma França à procura de rumo pois a nova política americana para o Iraque esvaziava a estratégia francesa para o encontro de ministros dos Negócios Estrangeiros, no Egipto a 22 e 23 de Novembro, destinado a discutir o futuro do Iraque. A França já se tinha preparado (como acontece na realidade) para tentar colocar na agenda, desse encontro, a calendarização da retirada militar do Iraque. Seria menos um cartucho para a esforçada diplomacia francesa junto dos países árabes.
Kerry, neste ambiente dúbio, chegaria ao seu destino, a Alemanha. Cauteloso, uma vez que no caso alemão as posições são mais claras, encetaria conversações com Gerard Schroeder. Com certeza teria presente a recente conversa do seu enviado Richard Holbrooke com o primeiro-ministro alemão. O líder germânico questionou Holbrooke sobre qual seria a primeira coisa que Kerry faria se ganhasse as eleições. A resposta foi que Kerry faria uma viagem pela Europa para dinamizar as relações com a Europa. Com a eficiência que caracteriza os germânicos o alemão questiona se iriam pedir alguma coisa. Claro! Ajuda e tropas para o Iraque, responde o americano. Como conclusão Schroeder manifesta a típica solidariedade europeia: “Pois é exactamente disso que temos medo”.
Perante manifestações deste calibre imaginem se os americanos se importassem com a opinião dos europeus!? Poderia Kerry alguma vez ter ambições de chegar à Casa Branca?
Ninguém mais do que eu próprio gostaria que Bush tivesse perdido, mas são os americanos que escolhem e, assaltados ou não por uma vaga de conservadorismo que cria esta nova corrente Bushido, votaram de uma forma inequívoca no samurai texano. A América sente-se em guerra e age como tal, endivida-se externamente e suporta perdas humanas às quais não consegue chamar de colaterais.
Bush só pode ser melhor presidente neste segundo mandato, mas para trás ficou o padrão de uma Casa Branca que ataca um país estrangeiro com base em informações comprovadamente erradas, como a da suposta aliança Sadam/Ben Laden. Este é um facto que consta no Relatório de Carl Levin apresentado, muito recentemente, num comité do Senado. Só não consegue provar que George Bush conhecia a insustentabilidade da teoria, ao contrário do que acontece com Donald Rumsfeld e Dick Cheney…
Poucos atacam a justiça do ataque ao Afeganistão, mesmo que a instabilidade no país esteja para durar, mas a presença americana é relativamente segura, pelo menos enquanto o presidente do Paquistão for Musharraf. Como será quando começarem as medidas de guerra preventiva em países africanos ou no sudoeste asiático? Por outro lado, continuará a administração norte-americana a negligenciar a segurança interna dos Estados Unidos, ao que muitos já apelidam de “Vulnerabe Home Front”? Em três dias no Iraque, a administração americana gasta mais do que a quantia que despendeu, nos últimos três anos, na vigilância dos 361 portos comerciais americanos…
O que estas eleições revelam é que o Bushido é de aceitação interna, mas para aplicação externa. Os americanos esperam mais deste presidente do que o resto do mundo, com a excepção dos terroristas que vêem confirmada a perspectiva maniqueísta do seu mundo. Um líder impositivo, uma resistência feroz. É a guerra aberta.
Será este Bush(ido) a solução ou existirão versões melhoradas nos próximos quatro anos?
Texto publicado em: www.tintafresca.net
1 comentário:
Como diria uma certa pessoa: "É a vida!
Enviar um comentário